segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Ser moderno


-Ser moderno, assim com estilo, percebe?- Falava Tati, enquanto olhava para mim, por detrás daqueles óculos de armação negra.
Tati era uma mulher magra, de pele enrugada excessivamente morena, cabelo castanho por onde pendiam madeixas loiras e lábios cor-de-rosa, contornados a castanho. Tati ostentava um casaco verde-àgua com plumas e borboto nos cotovelos, um colar até à cintura com pedras maiores que olhos, que lhe conferia uma postura curvada. Tati nas mãos usava anéis que quase tocavam nas unhas de gel pintadas em padrão zebra.
Disse-me olá nessa tarde de Inverno, comentou há quanto tempo não nos viamos, perguntou pela família, ela está bem, obrigado.
Estávamos nós então, nessa esplanada no fim de tarde de Inverno. As folhas castanhas passeavam por cima das pedras frias da calçada enquanto reflexos de pôr-de-sol atravessavam as àrvores.
-A minha casa está agora assim, super moderna, entende?Mandei vir de Nova-Iorque aqueles móveis minimalistas que se estão tanto a usar!-disse ela
Tati tinha quase sessenta anos. Filha de familias pobres, amiga de infância da minha mãe, casou-se muito jovem com um dono de uma cadeia de pastelarias, que há muito morrera e lhe deixara tudo.Tati, com a herança, deixou de trabalhar desde então, tornando-se famosa pelos relatos da brilhante riqueza que possúia, e pelo seu talento inato de organizar festas. Mesmo agora, com a pele a pender-lhe macia e esvoaçante, ainda conseguia dar luz e vida a qualquer evento.
-Querida, gosta do anel?Comprei-o a semana passada, numa boutique ali no centro, imagine, custou dois mil euros!-disse
Este tipo de conversas era uma constante em Tati. Já estavam tão enraizadas nos seus gestos, no seu olhar que a confiança depositada nela, andava a par da incredulidade.
Sorvi o enorme garoto quente entre as minhas mãos, deixei ser aquecida pelo vapor dele emanado. Depois de meia-dúzia de conversas superficiais, lá me despedi de Tati, com aquele abraço-não-abraço tão característico dela, que nunca sabia a que distanciamento se deveria manter de uma pessoa.

Estava a correr para apanhar o autocarro quando sinto o bolso das calças a vibrar. Era Tati. Estranho, pensei. Já não falo com ela há mais de um mês...
"QUERIDA?Olhe agora não tenho muito tempo para lhe explicar tudo, digamos que tenho de ir para espanha de urgência, e só me lembrei de si para pedir isto: o meu gato fica em casa e não tem que comer. As vizinhas não estão cá, de modos que não posso contar com elas. Se puder vir cá dar comer ao gato, volto dentro de três dias. Sei que nunca foi cá a casa, por isso vou deixar a chave debaixo do tapete. Ficar-lhe-ia muito agradecida. Rua da Graça, nº25 3º esquerdo."
Sim, concerteza, disse, concerteza que tenho tempo, Tati.
Enquanto conduzia em direcção à rua de Tati, apercebi-me daquele pequeno nervosismo que em mim surgia, de finalmente conhecer a tão-aclamada casa. Passei por diversas ruas em bairros típicos portugueses até finalmente dar com a rua da Graça, uma pequena e estreita rua que mais se assemelhava a uma travessa, com prédios decrépitos dos anos setenta, com as suas cores fortes pelo tempo esbatidas, persianas amarelas que um dia foram brancas como a roupa balançante nos estendais dessas mesmas varandas.
Achei estranho tudo aquilo não parecia correponder vagamente ao que me tinha sido descrito. No entanto ali estava ele. Nº25.
Subo as escadas.
Subo as escadas até ao terceiro andar. Entro no prédio.
A primeira sensação que me atingiu foi o cheiro a mofo. Depois a escuridão. Quando os meus olhos finalmente ficaram adaptados, espelhou-se toda a realidade: Era um andar velho, com janelas pequenas e móveis poeirentos dos anos setenta. Pilhas de bibelots, quadros, e bonecas faziam a casa parecer um museu. No meio estava um gato pardo de olhos verdes, gordo e peludo, e fitava-me na sua serenidade. Lá, pelo que a vista pudesse alcançar, não estava nem uma jóia, nem um móvel, nem um trapo que fosse, nem nada que se pudesse chamar caro.
Ao recordar de todos os relatos que ouvi ao longo dos anos questiono-me se Tati será de facto, uma ilusão, um devaneio poeirento que lhe ocorreu no dia que se casou, se será uma capa, uma máscara. Só uma frase me ocorria pela mente:


-Moderno, ONDE?-








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