quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Momento.

Estava contigo.

As noites materializavam-se de cor-de-rosa em pedaços de luz e brancos perdidos em pedras de calçada. Lisboa estende-se até à 25 de Abril, nua, despida de branco, iluminada pelos candeeiros de rua, velha, enrugada em pinturas carcomidas, amarelos e verdes pálidos, doentes do sol, enferrujados, encaracolados, encurralados nas varandas de ferro forjado.

Tonta de rodopiar nos binóculos precipitados na falésia do castelo de São Jorge, feitos para ver longe o que sinto de perto.

O tempo escapa-me, escorre e atravessa as minhas mãos como àgua, perante o meu desalento.

Que me resta mais senão rodopiar e ser um vulto desfocado? Talvez assim a água não atravesse tão rápido estas mãos, e com ela o tempo pare o teu regresso,pare lisboa, pare o castelo, e ele se transforme em duas crianças que teimam em rodopiar.

Já não sei se somos reais sequer, se somos o cliché da nostalgia entre ruinas abandonadas. Existimos? Ou será que testemunhamos verdades irreais, tão distantes como as realidades vividas por elas? Será que somos de pedra? Ou seremos a mais comum das histórias...

... a saudade?

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Ser moderno


-Ser moderno, assim com estilo, percebe?- Falava Tati, enquanto olhava para mim, por detrás daqueles óculos de armação negra.
Tati era uma mulher magra, de pele enrugada excessivamente morena, cabelo castanho por onde pendiam madeixas loiras e lábios cor-de-rosa, contornados a castanho. Tati ostentava um casaco verde-àgua com plumas e borboto nos cotovelos, um colar até à cintura com pedras maiores que olhos, que lhe conferia uma postura curvada. Tati nas mãos usava anéis que quase tocavam nas unhas de gel pintadas em padrão zebra.
Disse-me olá nessa tarde de Inverno, comentou há quanto tempo não nos viamos, perguntou pela família, ela está bem, obrigado.
Estávamos nós então, nessa esplanada no fim de tarde de Inverno. As folhas castanhas passeavam por cima das pedras frias da calçada enquanto reflexos de pôr-de-sol atravessavam as àrvores.
-A minha casa está agora assim, super moderna, entende?Mandei vir de Nova-Iorque aqueles móveis minimalistas que se estão tanto a usar!-disse ela
Tati tinha quase sessenta anos. Filha de familias pobres, amiga de infância da minha mãe, casou-se muito jovem com um dono de uma cadeia de pastelarias, que há muito morrera e lhe deixara tudo.Tati, com a herança, deixou de trabalhar desde então, tornando-se famosa pelos relatos da brilhante riqueza que possúia, e pelo seu talento inato de organizar festas. Mesmo agora, com a pele a pender-lhe macia e esvoaçante, ainda conseguia dar luz e vida a qualquer evento.
-Querida, gosta do anel?Comprei-o a semana passada, numa boutique ali no centro, imagine, custou dois mil euros!-disse
Este tipo de conversas era uma constante em Tati. Já estavam tão enraizadas nos seus gestos, no seu olhar que a confiança depositada nela, andava a par da incredulidade.
Sorvi o enorme garoto quente entre as minhas mãos, deixei ser aquecida pelo vapor dele emanado. Depois de meia-dúzia de conversas superficiais, lá me despedi de Tati, com aquele abraço-não-abraço tão característico dela, que nunca sabia a que distanciamento se deveria manter de uma pessoa.

Estava a correr para apanhar o autocarro quando sinto o bolso das calças a vibrar. Era Tati. Estranho, pensei. Já não falo com ela há mais de um mês...
"QUERIDA?Olhe agora não tenho muito tempo para lhe explicar tudo, digamos que tenho de ir para espanha de urgência, e só me lembrei de si para pedir isto: o meu gato fica em casa e não tem que comer. As vizinhas não estão cá, de modos que não posso contar com elas. Se puder vir cá dar comer ao gato, volto dentro de três dias. Sei que nunca foi cá a casa, por isso vou deixar a chave debaixo do tapete. Ficar-lhe-ia muito agradecida. Rua da Graça, nº25 3º esquerdo."
Sim, concerteza, disse, concerteza que tenho tempo, Tati.
Enquanto conduzia em direcção à rua de Tati, apercebi-me daquele pequeno nervosismo que em mim surgia, de finalmente conhecer a tão-aclamada casa. Passei por diversas ruas em bairros típicos portugueses até finalmente dar com a rua da Graça, uma pequena e estreita rua que mais se assemelhava a uma travessa, com prédios decrépitos dos anos setenta, com as suas cores fortes pelo tempo esbatidas, persianas amarelas que um dia foram brancas como a roupa balançante nos estendais dessas mesmas varandas.
Achei estranho tudo aquilo não parecia correponder vagamente ao que me tinha sido descrito. No entanto ali estava ele. Nº25.
Subo as escadas.
Subo as escadas até ao terceiro andar. Entro no prédio.
A primeira sensação que me atingiu foi o cheiro a mofo. Depois a escuridão. Quando os meus olhos finalmente ficaram adaptados, espelhou-se toda a realidade: Era um andar velho, com janelas pequenas e móveis poeirentos dos anos setenta. Pilhas de bibelots, quadros, e bonecas faziam a casa parecer um museu. No meio estava um gato pardo de olhos verdes, gordo e peludo, e fitava-me na sua serenidade. Lá, pelo que a vista pudesse alcançar, não estava nem uma jóia, nem um móvel, nem um trapo que fosse, nem nada que se pudesse chamar caro.
Ao recordar de todos os relatos que ouvi ao longo dos anos questiono-me se Tati será de facto, uma ilusão, um devaneio poeirento que lhe ocorreu no dia que se casou, se será uma capa, uma máscara. Só uma frase me ocorria pela mente:


-Moderno, ONDE?-








sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Despedida

Nada mudou desde que deixaste o mundo.

Os dias de setembro correm, e encurtam com o tempo, mas as árvores estão no mesmo tom verde castanho em que as viste, o céu continua azul-pálido como sempre.
Deixaste o mundo mas não faz mal, da minha parte não me poderei apontar nem como a amiga mais chegada ,ou a amiga sempre presente, mas a minha vida roçou com a tua há oito anos atrás e ontem não consegui dormir á noite.
Quero que saibas que até para a pessoa mais distante, até para o mero conhecimento, como eu, tocaste-me pela tua bondade e amizade, pelos teus sorrisos. Estarás sempre viva na minha memória como a pessoa lutadora e bem disposta que eras
Deixaste o mundo. não faz mal. Todos nós um dia o deixamos. A tua partida foi apenas mais cedo que o que estava marcado.

Tristemente, fui criança contigo, serei adulta sem ti.






domingo, 14 de setembro de 2008

Anoitecer


Anoitecer em sines


Concertinas tocam desenfreadamente, fundem-se com palmas, dança, fumo, poeira e pés.
Faiz grita , rasga as cordas vocais numa concertina, misturadas com as outras cordas, concertinas também humanas.
tocam deus. incansável, intemporal, fundese-se com a lua, e com a plateia que vibra e dança, e acima de tudo que ouve.
Faiz limpa o gota de suor que lhe cai da testa com um lenço branco, depois de ter cantado tantas palavas tão rápido a sua cabeça já zunia, tinia, não sabia se do esforço, se da velocidade com que as tinha pronunciado.
Luzes percorriam o palco, amarelas, verdes e rosa, ofuscavam Faiz.
Sentia o calor do público, as vozes, milhares de braços a agitarem-se em uníssono, separados todos pelas cultura e nacionalidades, e todos (re)unidos pela sua voz.
Lá no meio estou eu. O Oliver, o meu namorado, olhava para mim enquanto fazia um esforço para dançar uma música que é feita para ser ouvida, como eu. A ligia, minha irmã conversava animadamente com o Gonçalo atrás de nós, com o seu copo de vinho tinto de plástico, da herdade do esporão, ao qual considerou "bom" de acordo com a sua recente noção de enologia. O Sascha, ou melhor, o amigo alemão, encontrava-se lá para o fundo, com o seu chapéu verde e patilhas de cowboy , movendo braços, mãos e pernas em gestos circulares, que forma quase exuberante, enquanto tropeçava no meio dos pés de uma multidão completamente lotada.

Agora apenas eu, em frente a um ecrã, a ouvir a voz de Faiz a desdobrar-se nas colunas do meu computador. O relogio indica 00:36. Está a ficar tarde. Talvez, deva-me ir deitar, penso. Não faz mal. Amanhã começa o bem ou maldito primeiro dia de aulas, maldito porque encerra um ciclo, bemdito porque inicia outro. acabo de me apeceber que voei durante um bom bocado e que afinal estou aqui. Assim como uma moeda que se atira ao ar e que voltou a cair, desta vez numa face diferente.

Pessoalmente sou mais observadora, costumo guadar o que escrevo só para mim.

Desta vez apateceu-me mudar. Revelar a face que conta, sonha vê e relata, mas essencialmente revelar a face que partilha com os outros o pensamento desdobrado em letras.







quarta-feira, 6 de agosto de 2008

lingua portuguesa


"O idioma, por isso mesmo que é uma tradição verdadeiramente viva, concentra em si, instintiva e naturalmente, um conjunto de tradições, de maneiras de ser e de pensar, uma história e uma lembrança, um passado morto que só nele pode reviver, acrescentando que estamos neste mundo, divididos por natureza em sociedades secretas diferentes, em que somos iniciados à nascença; e cada uma tem, no idioma que é o seu, a sua própria palavra de passe"